quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Cobra cega.

Você apareceu suave, rindo, caminhando com firmeza na bagunça que era a minha casa. Entrou tímido e ocupou minha cama de risadas e noites apertadas entre o aquecedor e o abismo. Me enrolou na tua camiseta e me deu segurança de que a vida podia ser a sorte de um amor tranquilo.

Chegou devagar, me apertou contra o peito e prometeu me proteger de todo o mal. De todo o mundo. De tudo. Cuidou do meu jardim, dos meus joelhos ralados e cercou todos os espaços com teus olhos. Pra me cuidar. Segurou minha mão e me levou contigo, me prendeu do teu lado e me fez ter certeza que você estaria sempre lá. Mesmo quando eu fizesse algo errado. Mesmo quando eu entendesse errado as tuas palavras. Mesmo que eu perdesse o controle.

Você estaria lá. 

Até quando fosse embora. 

Até quando eu caminhasse o bairro de meia e camiseta buscando entender porque no meu peito fazia mais frio que o vento que entrava na janela que você esqueceu aberta na pressa de sair.

Mesmo quando eu fizesse a gente discutir no meu restaurante preferido depois de você pagar a conta. Você levantaria e me deixaria sozinha. Mas estaria lá.

Estaria milimetrando de perto meus passos. Pra ter certeza que eu notaria tua ausência justificada. Pra se certificar que eu ia aprender a estar do teu lado. Pra me mostrar com detalhes as vezes que eu saí dos trilhos enquanto você deliberadamente se afastava pra me ensinar.

Você estaria longe, mas sempre ali. Sempre perto pra me lembrar que os pedaços que eu ia deixando no caminho me deixavam cada vez mais oca, cada vez mais invisível. Cada vez mais necessitada do teu braço forte pra me conduzir, porque sozinha eu já não conseguia chegar a lugar nenhum. 

E eu ficaria te esperando. Com as costas feridas de tanto cansaço, só pra te ouvir subir o tom por eu estar atrasada, ou por ter confundido o lugar. Culpa minha não entender o teu cuidado. Culpa minha não saber lidar com a sobrecarga, não saber manejar meus horários. Rezava pra dessa vez você chegar e me guiar no caminho pra casa enquanto eu estava tão entorpecida, sem saber se esse vazio era fome ou desespero.

Eu fui seguindo teus passos. Esquivando de cada porrada na parede que errou de leve a minha cara. Bloqueando todas as portas que você ameaçava cruzar levando junto os pedaços do meu espírito já quase inexistente. Porque só você conhecia a pessoa que eu era agora. Só você me abraçava a noite quando eu soluçava de saudade de quem eu era, perdida nessa viagem que eu me culpava por ter escolhido e agora não sabia arrombar a saída. Só você prometia ficar mesmo que tenha sobrado só a minha casca vazia.

Ruí inteira. Perdi o ar, perdi o espaço. Me perdi e nos perdemos. E no meu desespero de ser inteira, pulei de roupa e tudo no mar. Desesperada. Agoniada. Esperando que a correnteza abrigasse o pouco que sobrou. Que me lavasse dessa culpa e desse medo. Que me levasse e me impedisse de nadar de volta. Fiquei à deriva, delirei arco-íris, construí um farol e nadei sem plano e sem rumo buscando onde eu pudesse ancorar.

Cheguei na praia em pedaços.
Morta de medo.

Livre.